quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

ENCERRAMENTO DO AMOR



CLÔTURE DE L´AMOUR
Do amor e suas cercas.


Li dois colegas meus.
Danilo que escreveu sobre essa montagem e Lionel Fischer, esse último  sobre a peça com a direção de Luis Felipe Reis.
Notas iniciais, a partir de meus colegas
1-   A verborragia de mais de duas horas de espetáculo (Danilo)
Eu diria que a peça se constitui em dois gigantescos bifes.
Esse o nome que se dava ao falar de um personagem que tivesse mais de meia página. Mas tanto bife quanto verborragia são termos usados em geral para textos  de dramaturgos ruins ou muito muito antigões. Um Shakespeare para anunciar a morte de Ophelia, põe na boca de Gertrude um filé inteiro. Mas que bife!
There is a Willow growes aslant a Brooke,
That shewes his hore leaues in the glassie streame:
There with fantasticke Garlands did she come,
Of Crow-flowers, Nettles, Daysies, and long Purples,
That liberall Shepheards giue a grosser name;
No meio das flores- lembrem-se que o autor nos brindou, em ATRIZ, com uma atriz deitada no meio das flores, certamente bebendo a imagem nessas muddy waters de Shakespeare – o maldito bardo coloca uma flor que tem um grosser name, algo como caralho, pois essa é sua forma. Pesquisem no Google. Então de bandeja está a nos dar uma mescla de coisas românticas com coisas safadas, um leve tom pornô elisabetano. No fundo daquele rio morre a beleza e morre a sexualidade.
Foi como li essas purples, e não como os críticos ou apressados, essas “cold Maids”....But our cold Maids doe Dead Mens Fingers call them:
Essas coisas – o autor nisso é implacável pois é assim que falamos da ficção cênica para lhe dar “realidade”, parecendo uns tratados kantianos- podem ter uma significação precisa dentro do contexto da peça e então não é mais um bife nem verborragia: é inteligência.
Permitam que eu me explique, se é que preciso depois de Gertrude:
a-   O truque literário é bem simples: escrevem-se os diálogos, depois separam-se todas as falas e de novo se as junta segundo cada personagem. Entenderam, o truque? Pois agora vão lá e escrevam suas peças, pois estamos precisando.




b-   Foi a partir daí que meu amigo de papel Fischer fez a pergunta:
porque o autor juntou tudo, fazendo opção por discursos isolados?
Responde, como conjectura, que assim saímos dos bate-papos tradicionais entre casais o que permite que tudo que um personagem diz seja escutado pelo outro e pelo público. As razões que dá são interessantes por propor que um francês teria bastante razões intelectuais para fazer isso, o que deu à peça um tom por demais cerebral.
Como diz Ada: discordo, ah discordo!
( Desculpem, não era a vez dela.)
Não sei o que o autor pretendeu, mas sei o que escreveu e como escreveu.
E é só o que tenho.
A crítica literária se especializou em escavar a vida e obra de autores para tentar elucidar o que eles insistiam em fazer mistério, porque senhores, um texto é apenas um pedaço solto de mistério. Dramas porém nunca foram lá tão boa “literatura”, pois escritos na própria raiz da escrita, o visual, foram feitos para serem vistos. Por isso os gregos daquele século V glorioso, ao descobrirem a escrita, descobriram o teatro, abrindo o futuro para tudo o que fosse virtual. Pela mesma razão monges medievais iluminavam letras iniciais e enchiam velhos textos com desenhinhos bem mal feitos mas que cold Maids cool illuminations call them.
E como não ver que o texto que temos é apenas o da representação, do que se re-apresenta face a nós. Conceito que Barthes estendeu para tudo que fosse tecido e não apenas as letrinhas,literae, impressas em papel perecível para segurar a história contada pelo autor e perpetuar sua memória entre nós?
Algo se nos apresenta através das sombras e entrelinhas que se lhe criam às quais nomeamos  desenho de luz (meu deus qual iluminador se seguraria para manter só aquela linha, faixa, fixa no palco? Esse rapaz é muito bom, senhores!) 
Algo se nos apresenta num espaço próprio que lhe comprime, nos reprime e toda hora temos que indicar ao público: isso é cena, isso é teatro, isso é cenário, e às vezes: não bote uma parede aqui na frente ó Brecht!  E creio- é artigo de fé- que uma dramaturgia que se expande vigorosamente “verborrágica” , talvez esteja exatamente também construindo essa parede entre  eles o os Outros, performers e seu público. Pela estranheza causada pelo retorno para trás, para o textão.  Nem vou citar meu cupincha Samuel- já está ficando chato e já estão até atacando o pobre, mas na verdade a mim, porque são apenas interpretações dele e não ele mesmo, sou eu na minha ignorância e errância que chamo algo “ isso é Samuca!”. E nem é. É só saudade besta de um grande amigo.
Mas, danem-se, aqui o autor sou eu e  vou citar sim pois é só o título de obra: “texticules”, textes pour rien. .  Se isso, como os purples da Rainha Gertrude não for referência clara a clássicos textões, não sei o que é. Testículos certamente, já que Samuca tem um humor irlandês como Freak Fischer mais anthropo que muita conversa.
Algo se nos apresenta diretamente na casca externa do atores, voz, gestos, trejeitos, ações, entonações, corridas para voltar ao foco, à luz. Não foi erro de ator, é errância: eles saem e entram e saem da luz. Interpretar não e só chegar lá e flexionar o texto, coisa que esses três também dão um banho. Não é só gesticular “corretamente”, não se apontando com o dedo, digitalmente, para o trem onde está escrito isso é um trem. Interpretar é encontrar as pequeninas sombras que nosso corpo projeta no espaço quando nos expomos e mostrá-las, indicar os lugares onde se aninham as luzes em forma de sombras. João e Ada fizeram esse percurso com uma maestria que dá ódio só ter descoberto isso bem velho como eu.
Esses guris de Brasília estão me apavorando.
Já disseram da região de nascimento de Jesus, mas temos que glosar: há algo de bom que nasce em Brasilia?
Há, pode? 
Deuses, não consigo escrever sem pensar o tempo todo em Renata, meu Jesus predileto. Desculpem-me as citações da Bíblia. Nem sou pastor.
Depois desse lapso gigante verborrágico sobre a encenação e a peça,volto à peça e aos que a comentaram, incluindo eu mesmo.
Porque foi o único ponto fraco da minha noite.
Para ser francêsa- coisa aventada por Lionel, talvez tenha mais a ver com Molière que com filosofia. O Côrno Imaginário é uma peça de 1600 e picos e é moderna, é quase teatro do absurdo como queria o Esslin, o rapaz alemão que mais errou sobre Samuel e sobre absurdo, apesar de ter sido o texto que mais influenciou os anos 60, se dizia.
Molière escreveu a primeira peça em que ninguém conversa com ninguém: é um diálogo de surdos- também como se dizia, como se a falta de sons e de verborragia e bifes nos impedisse de dialogar.  Pocquelin prenunciou uma série de textos em que as pessoas não conseguem se comunicar- sobre a incomunicabilidade humana portanto- quase prevendo que a Europa iria se lascar em duas guerras mundiais que iriam gerar esse sentimento de frustração diante do Outro, tão bem nomeado por Sartre, Camus e outros francêses.
Aqui, fechando esse ciclo francês de discussão sobre textos e testículos, não há bife, nada é verborrágico. É técnica de escritura que ressalta o não se interessar do personagem pela opinião do outro uma vez que se fala se fala e se fala em nome do outro:” mas foi você, você quem ...”etc.
Antes de falar em Koltès,  ou bancar o diretor: só há uma coisa – ó coisa- que eu mudaria na encenação dessa peça: não haveria o Outro em cena. Só evocado, pois parece-me uma das grandezas da cena teatral é a de nos fazer ver o que não está no palco, mas por trás de tudo.
O teatro moderno mudou um pouco essa escritura fazendo-nos ver tudo, até quem passa pelo fundo por estar com a pauta para treinar o sapateado.
Ou, em gag, pois está na hora de se mudar o foco de um personagem para o outro. Achado divertidíssimo dessa peça, que é melô- sempre mistura presenças fortes de texto com presenças desconexas porque se apresentando como reais, de imagens. Como Ada comendo banana enquanto João se acaba em argumentos.
Agora permitam-me voltar a Koltès
Claro, prefiro de longe Koltès.
Solidão nos Campos de Algodão fala exatamente do mesmo lugar e exatamente  desta maneira, a dois. Não junta. Deixa o bate-boca, que por sinal é bate-boca mesmo porque tanto o dealer como o comprador estão amedrontados um com o outro. E isso não enfraquece em nada o texto. Mas Koltès foi um dos grandes  e provavelmente – pelo que vi do autor de Clôture- bem mais refinado.  
Inicia com bifes gigantescos de cada personagem e aos poucos vai reduzindo o texto de cada um (uma página, meia, um quarto, 10 linhas, 5, 4, 3..) ao se dirigir ao outro, até se trocarem frases curtas. Os personagens se aproximam, por aproximar o tempo de fala, por aumentar o tempo de escuta. E isso só um Koltès fez. Deixando para o publico a pergunta final: “então quais as armas?”
As armas são as palavras, a luta a comunicação.
Isso aparece bastante também em Clôture de l´Amour.
A palavra aparece ligada a paradigmas, linguagem ou discussões chiques pós-estruturalistas, zombadas por Ada.  Dessa vez a palavra aparece como palavra e não como arma, apesar de João e Ada se digladiarem o tempo todo. Ai entra aquilo que chamamos preferências ou gosto, devidamente zombado já por Voltaire na história de que sapo gosta de sapas. Prefiro de longe Koltès. E vou inventar um palco para minha escolha: esse Brasil em que as armas-tolas serão liberadas.
Armas são as palavras que todo tempo tentam nos retirar.
E finalmente conseguiram fazê-lo com Renata e, claro, nós todos.
Já que me armei, vou incluir agora uma observação que caberia depois mas não terei chance de voltar a ela.
Vi um autor dizer que esse texto é interessante porque na maioria dos textos a voz masculina é a mais forte e termina por vencer de algum modo e que em Clôture  é a mulher quem leva a melhor. Discussões sobre mulheres à parte, creio que foi o que me chateou no texto: João é só agressão e culpabilização. Ada ainda o ama(?), ela ainda estende a mão para ele. Fiquei com a terrível sensação de que João era um puta escroto e Ada gente boa, sofrida, mas forte.
E isso me conduz rapidamente à nefanda moral da história.
Desde quando precisamos de moral em nossas histórias? Quousque tandem abusaremos da paciência de nosso público escolhendo a conclusão por ele, dando-lhe conselhos e depois achando ruim de pastores, padres, diretores teatrais, bolsoninhos e tantos perversos bolsos e tantos perversos ninhos e toda tralha que quer fazer nossa cabeça à força, nos orientar, guiar?
Em nome de que deuses, ó deus?!!!
Dito isso, em voz bem alta e pedindo licença a João para roubar-lhe a fúria, é bela a cena em que só aparece o braço.
Mais bela ainda pelo fato de um e outro repetirem tantas vezes marcas corporais físicas, “ levanta a cabeça” etc.
Coisa tão bem anotada por meu amigo Fischer, esse rapaz que agora estou seguindo nas redes .
A cena reafirma o que as marcas textuais insistem em botar em nossa cara e assim devolvem ao corpo o epicentro dessa tsunami verbal.
 O que os disgraça não é a razão cartesianamente francesa ou razões.
Mas o corpo e seus espaços, nomeado aqui e ali aos pedaços e posto todo tempo sob controles: ‘não chora”, levanta a cabeça”, endireita a coluna”.
Os mesmos controles que críticos ( “ prefiro assim” “ creio”, “ penso” Pense , logo desista, céus!!), diretores, coreógrafos, ditadores e outros fdp costumam exigir de atores, bailarinos, brasileiros, humanidade, não?
De alguma maneira esse texto me fala mais do nosso corpo dentro do jogo de interpretação que de uma relação qualquer homem/mulher em bate-boca. Controlei vocês? Mandei recado? Porque insistimos em ser tolos tantas vezes e tanto tempo? Só há uma relação séria e importante em teatro: a do corpo do ator com os corpos de seu público.
Os Outros somos a distração.
Em clôture, o que está tentando se juntar é um corpo. Há um corpo feito, nomeado, aos pedaços em cena e isso é talvez o melhor de todo o texto.
Isso é o que realmente separa, num espaço sagrado, agora também palco, um do outro. Porque clôture pode ser clausura- que separa a vida religiosa do mundo- ou pode ser aquele lugar nas igrejas reservado para o clero, separando-o dos fiéis.
A palavra clôture aqui usada pelo autor provavelmente tem essa significação e não a do óbvio” encerramento”.  Peçam-me as traduções da próxima vez, que farei com prazer.
Prefiro cercas, portanto. Estamos ilhas cercados de palavras por todos os lados.
Vejo a ação se passar num ensaio, sobre um palco, onde  há uma “quarta parede”. E refere-se ao público várias vezes (“eu me dei a eles”,a nós portanto- diz Ada). Nesse referencial, encontrei em clôture uma metáfora maravilhosa desse mesmo palco italiano que coloca uma conversa de surdos lá em cima, num espaço sagrado, separado desde a subida dos atores ao iniciar a peça.
E, cá em baixo, os Outros, dos quais o texto dessa peça não duvida nem por um segundo serem ouvintes e videntes. Coisa bem francêsa.
Ora, não somos.
Tanto não somos que o autor teme que o bate-boca dos antigos amantes  nos perturbe e não nos permita ver que eles não conversam, não conversaram nunca e não conversarão jamais, mesmo que chovam melancias dos céus de Recife. Talvez essa seja uma boa razão para a escolha do autor de juntar tudo, meu caro Fischer. O que nos une, uniu e iunirá, não é razão, é fascinação. E lá no apartamento ao lado agora um senhor de meu tempo coloca todo dia em volume 10 músicas de seu e meu passado.
Fascinaram a ele e a mim.
Não reclamo porque continuo fascinado. Fascinado, mesmo que não tenham sido exatamente sadias- apenas cacarecos do que fomos e estou introduzindo nosso misantropo aqui de novo - as memórias que se colaram nesses sons, nessas músicas, nessas peças, os Outros sons, as conversas, os papos, as revoltas de minha eterna juventude esquerdista que tentamos à força reviver.  O fdm está tocando fascinação com Nat King Cole e eu vou fazer uma pausa porque estou chorando, fascinado comigo mesmo e minha história pessoal , romanticamente passada como se passada, como perda, como fim.
Qual.
Nunca perdemos nada.
Vou chorar um pouquinho e voltar para cá.

c-   Creio que não me fiz entender por me estender demais, fazendo um bife gigantesco desse meu texto. Estou fazendo meu papel de macho crítico, sou João.
d-   Vou resumir: O texto literário de Clôture de l´Amour me coloca várias dúvidas sobre suas qualidades e pelo menos uma sobre sua tradução. Então creio que algo faltou na minha noite, por conta desse senhor. Não me importam quantos prêmios tenha recebido, não me importam que bons pensamentos tenha o autor e quantas outras peças geniais tenha escrito. Até Molière escreveu “pastorais” para o Luis XIV dançar, tremendas porcarias que não diminuem em nada O Côrno Imaginário...
Agora é a fala de Ada: Não permito que fale de meu trabalho!





e-   Falo sim, pois sou eu quem apaga as luzes aqui.
A-  Sempre acho que fica mais fácil de se trabalhar com um bom texto  dramatúrgico. Esse , como disse ,me deixa preocupado.Substituiria por um Molière ou um Koltès .Mas não sou eu que decide isso. Criticos são apenas público. Faço questão de lembrar isso.
B-   O extraordinário é quando um  texto que na minha apenas opinião não é o melhor consegue ser defendido com tanta força e inteligência. Rapaz, cada um desenvolve 50 minutos de fala e nós nem nos movemos. Vcs ouviram cadeiras com ruídos, tosses inoportunas, roncos abafados ou coisas tais? Esses dois atores conseguem nos segurar na ponta das vozes deles sem nos largar. Estou dizendo isso até  porque acho coisas belas no texto e outras bem menos interessantes.
C-  E no entanto.
D-  E no entanto  fiquei eu lá, em suspenso. E olha que estava sentado numa daquelas fileiras de trás, miserável cujo espaço entre cadeiras não permite se esticar a perna- teatros titicas que nós temos e que não respeitam o público mas querem que ele venha lotá-los,
E-  Perdoem não dar os nomes corretos agora, por causa da hora e não dá tempo de conferir. Mas corrigirei para a edição final,ok?
F-   Então: atores fa-bu-lo-sos. Fazendo uma peça-textão, difícil mesmo e como já cansaram de dizer: indo contra algumas correntes modernas que foram eliminando a fala sonora do personagem em favor de uma noção mais ampla de texto. Noção da qual meu amigo Barthes foi um dos tecedores.
G-  A direção-e olha que odeio diretores!- foi limpa e precisa. Não sei se o intermezzo do sapateado e a queda  final da melancia sanguinolenta fazem parte do texto original.
H-   Se fazem: que achado!
I-     Se não fazem, e é invenção de algum de vocês: que achado!
J-   Aquele simples corredor de luz é tudo. O local de tanta grandeza de vida anterior é sombrio. “Você é grande”- me parece ter ouvido João falar de Ada.
K-  Aquele palco é tudo. Um presente do escritor que decidiu colocar atores ensaiando e discutindo consigo mesmos. Tudo falsamente nu.
L-   Aquele público, que maravilha! Em Recife, dia de chuva, lá para aquelas bandas?!!! E tudo fascinado. Lindo, não? Só chorando!
M-  Bota o Nat King Cole ai por favor

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