CLÔTURE DE L´AMOUR
Do amor e suas cercas.
Li dois colegas meus.
Danilo que escreveu sobre essa montagem
e Lionel Fischer, esse último sobre a
peça com a direção de Luis Felipe Reis.
Notas iniciais, a partir de meus
colegas
1-
A verborragia de
mais de duas horas de espetáculo (Danilo)
Eu diria que a peça se constitui em
dois gigantescos bifes.
Esse o nome que se dava ao falar de um
personagem que tivesse mais de meia página. Mas tanto bife quanto verborragia são termos usados em geral para textos de dramaturgos ruins ou muito muito antigões.
Um Shakespeare para anunciar a morte de Ophelia, põe na boca de Gertrude um
filé inteiro. Mas que bife!
There is a Willow growes aslant a Brooke,
That shewes his hore leaues in the glassie streame:
There with fantasticke Garlands did she come,
Of Crow-flowers, Nettles, Daysies, and long Purples,
That liberall Shepheards giue a grosser name;
That shewes his hore leaues in the glassie streame:
There with fantasticke Garlands did she come,
Of Crow-flowers, Nettles, Daysies, and long Purples,
That liberall Shepheards giue a grosser name;
No meio das flores- lembrem-se que o autor nos brindou, em ATRIZ, com uma atriz deitada no
meio das flores, certamente bebendo a imagem nessas muddy waters de Shakespeare – o maldito bardo coloca uma flor que tem um grosser name,
algo como caralho, pois essa é sua forma. Pesquisem no Google. Então de bandeja
está a nos dar uma mescla de coisas românticas com coisas safadas, um leve tom
pornô elisabetano. No fundo daquele rio morre a beleza e morre a sexualidade.
Foi como li essas purples, e não como
os críticos ou apressados, essas “cold Maids”....But our cold Maids doe Dead Mens Fingers call them:
Essas coisas – o autor nisso é implacável pois é assim que falamos da ficção cênica para
lhe dar “realidade”, parecendo uns tratados kantianos- podem ter uma significação precisa dentro do contexto da
peça e então não é mais um bife nem verborragia: é inteligência.
Permitam que eu me explique, se é que
preciso depois de Gertrude:
a-
O truque literário é
bem simples: escrevem-se os diálogos, depois separam-se todas as falas e de
novo se as junta segundo cada personagem. Entenderam, o truque? Pois agora vão
lá e escrevam suas peças, pois estamos precisando.
b-
Foi a partir daí que
meu amigo de papel Fischer fez a pergunta:
porque o autor juntou tudo, fazendo opção por discursos
isolados?
Responde, como conjectura, que assim
saímos dos bate-papos tradicionais entre casais o que permite que tudo que um personagem diz seja escutado pelo outro e pelo público. As razões que dá são interessantes por propor que um
francês teria bastante razões intelectuais para fazer isso, o que deu à peça um
tom por demais cerebral.
Como diz Ada: discordo, ah discordo!
( Desculpem, não era a vez dela.)
Não sei o que o autor pretendeu, mas sei o que escreveu e como escreveu.
E é só o que tenho.
A crítica literária se especializou em
escavar a vida e obra de autores para tentar elucidar o que eles insistiam em
fazer mistério, porque senhores, um texto é apenas um pedaço solto de mistério.
Dramas porém nunca foram lá tão boa “literatura”, pois escritos na própria raiz
da escrita, o visual, foram feitos para serem vistos. Por isso os gregos
daquele século V glorioso, ao descobrirem a escrita, descobriram o teatro,
abrindo o futuro para tudo o que fosse virtual. Pela mesma razão monges
medievais iluminavam letras iniciais e enchiam velhos textos com desenhinhos
bem mal feitos mas que cold Maids cool illuminations call
them.
E como não ver que o texto que temos é apenas o da representação,
do que se re-apresenta face a nós. Conceito que Barthes estendeu para tudo que
fosse tecido e não apenas as letrinhas,literae, impressas em papel perecível
para segurar a história contada pelo autor e perpetuar sua memória entre nós?
Algo se nos apresenta através das
sombras e entrelinhas que se lhe criam às quais nomeamos desenho de luz (meu deus qual iluminador se
seguraria para manter só aquela linha, faixa, fixa no palco? Esse rapaz é muito
bom, senhores!)
Algo se nos apresenta num espaço
próprio que lhe comprime, nos reprime e toda hora temos que indicar ao público:
isso é cena, isso é teatro, isso é cenário, e às vezes: não bote uma parede aqui na frente ó Brecht! E creio- é artigo de fé- que uma
dramaturgia que se expande vigorosamente “verborrágica” , talvez esteja
exatamente também construindo essa parede entre
eles o os Outros, performers e seu público. Pela estranheza causada pelo
retorno para trás, para o textão. Nem
vou citar meu cupincha Samuel- já está ficando chato e já estão
até atacando o pobre, mas na verdade a mim, porque são apenas interpretações
dele e não ele mesmo, sou eu na minha ignorância e errância que chamo algo “
isso é Samuca!”. E nem é. É só saudade besta de um
grande amigo.
Mas, danem-se, aqui o autor sou eu
e vou citar sim pois é só o título de
obra: “texticules”, textes pour rien. . Se isso, como os purples da Rainha Gertrude não for referência
clara a clássicos textões, não sei o que é. Testículos certamente, já que Samuca tem um humor irlandês como Freak
Fischer mais anthropo que muita conversa.
Algo se nos apresenta diretamente na
casca externa do atores, voz, gestos, trejeitos, ações, entonações, corridas
para voltar ao foco, à luz. Não foi erro de ator, é errância: eles saem e
entram e saem da luz. Interpretar não e só chegar lá e flexionar o texto, coisa
que esses três também dão um banho. Não é só gesticular “corretamente”, não se
apontando com o dedo, digitalmente, para o trem onde está escrito isso é um
trem. Interpretar é encontrar as pequeninas sombras que nosso corpo projeta no
espaço quando nos expomos e mostrá-las, indicar os lugares onde se aninham as
luzes em forma de sombras. João e Ada fizeram esse percurso com uma maestria
que dá ódio só ter descoberto isso bem velho como eu.
Esses guris de Brasília estão me apavorando.
Já disseram da região de nascimento de
Jesus, mas temos que glosar: há algo de bom que nasce em Brasilia?
Há, pode?
Deuses, não consigo escrever sem pensar
o tempo todo em Renata, meu Jesus predileto. Desculpem-me as citações da
Bíblia. Nem sou pastor.
Depois desse lapso gigante verborrágico
sobre a encenação e a peça,volto à peça e aos que a comentaram, incluindo eu
mesmo.
Porque foi o único ponto fraco da minha
noite.
Para ser francêsa- coisa aventada por
Lionel, talvez tenha mais a ver com Molière que com filosofia. O Côrno
Imaginário é uma peça de 1600 e picos e é moderna, é quase teatro do absurdo
como queria o Esslin, o rapaz alemão que mais errou sobre Samuel e sobre absurdo,
apesar de ter sido o texto que mais influenciou os anos 60, se dizia.
Molière escreveu a primeira peça em que
ninguém conversa com ninguém: é um diálogo de
surdos- também como se dizia, como se a falta
de sons e de verborragia e bifes nos impedisse de dialogar. Pocquelin prenunciou uma série de textos em
que as pessoas não conseguem se comunicar- sobre a
incomunicabilidade humana portanto- quase
prevendo que a Europa iria se lascar em duas guerras mundiais que iriam gerar
esse sentimento de frustração diante do Outro, tão bem nomeado por Sartre,
Camus e outros francêses.
Aqui, fechando esse ciclo francês de
discussão sobre textos e testículos, não há bife, nada é verborrágico. É
técnica de escritura que ressalta o não se interessar do personagem pela
opinião do outro uma vez que se fala se fala e se fala em nome do outro:” mas
foi você, você quem ...”etc.
Antes de falar em Koltès, ou bancar o diretor: só há uma coisa – ó
coisa- que eu mudaria na encenação dessa peça: não haveria o Outro em cena. Só
evocado, pois parece-me uma das grandezas da cena teatral é a de nos fazer ver
o que não está no palco, mas por trás de tudo.
O teatro moderno mudou um pouco essa
escritura fazendo-nos ver tudo, até quem passa pelo fundo por estar com a pauta
para treinar o sapateado.
Ou, em gag, pois está na hora de se
mudar o foco de um personagem para o outro. Achado divertidíssimo dessa peça,
que é melô- sempre mistura presenças fortes de texto com presenças desconexas
porque se apresentando como reais, de imagens. Como Ada comendo banana enquanto
João se acaba em argumentos.
Agora permitam-me voltar a Koltès
Claro, prefiro de longe Koltès.
Solidão nos Campos de Algodão fala exatamente do mesmo lugar e exatamente desta maneira, a dois. Não junta. Deixa o
bate-boca, que por sinal é bate-boca mesmo porque tanto o dealer como o
comprador estão amedrontados um com o outro. E isso não enfraquece em nada o
texto. Mas Koltès foi
um dos grandes e provavelmente – pelo que vi do autor de Clôture-
bem mais refinado.
Inicia com bifes gigantescos de cada
personagem e aos poucos vai reduzindo o texto de cada um (uma página, meia, um
quarto, 10 linhas, 5, 4, 3..) ao se dirigir ao outro, até se trocarem frases
curtas. Os personagens se aproximam, por aproximar o tempo de fala, por
aumentar o tempo de escuta. E isso só um Koltès fez. Deixando para o publico a
pergunta final: “então quais as armas?”
As armas são as palavras, a luta a
comunicação.
Isso aparece bastante também em Clôture de l´Amour.
A palavra aparece ligada a paradigmas,
linguagem ou discussões chiques pós-estruturalistas, zombadas por Ada. Dessa vez a palavra aparece como palavra e não
como arma, apesar de João e Ada se digladiarem o tempo todo. Ai entra aquilo
que chamamos preferências ou gosto, devidamente zombado já por Voltaire na
história de que sapo gosta de sapas. Prefiro de longe Koltès. E vou inventar um
palco para minha escolha: esse Brasil em que as armas-tolas serão liberadas.
Armas são as palavras que todo tempo
tentam nos retirar.
E finalmente conseguiram fazê-lo com
Renata e, claro, nós todos.
Já que me armei, vou incluir agora uma
observação que caberia depois mas não terei chance de voltar a ela.
Vi um autor dizer que esse texto é
interessante porque na maioria dos textos a voz masculina é a mais forte e
termina por vencer de algum modo e que em Clôture é
a mulher quem leva a melhor. Discussões sobre mulheres à parte, creio que foi o
que me chateou no texto: João é só agressão e culpabilização. Ada ainda o
ama(?), ela ainda estende a mão para ele. Fiquei com a terrível sensação de que
João era um puta escroto e Ada gente boa, sofrida, mas forte.
E isso me conduz rapidamente à nefanda moral da história.
Desde quando precisamos de moral em
nossas histórias? Quousque tandem abusaremos da paciência de nosso público
escolhendo a conclusão por ele, dando-lhe conselhos e depois achando ruim de
pastores, padres, diretores teatrais, bolsoninhos e tantos perversos bolsos e
tantos perversos ninhos e toda tralha que quer fazer nossa cabeça à força, nos
orientar, guiar?
Em nome de que deuses, ó deus?!!!
Dito isso, em voz bem alta e pedindo
licença a João para roubar-lhe a fúria, é bela a cena em que só aparece o braço.
Mais bela ainda pelo fato de um e outro
repetirem tantas vezes marcas corporais físicas, “ levanta a cabeça” etc.
Coisa tão bem anotada por meu amigo
Fischer, esse rapaz que agora estou seguindo nas redes .
A cena reafirma o que as marcas
textuais insistem em botar em nossa cara e assim devolvem ao corpo o epicentro
dessa tsunami verbal.
O que os disgraça não é a razão
cartesianamente francesa ou razões.
Mas o corpo e seus espaços, nomeado
aqui e ali aos pedaços e posto todo tempo sob controles: ‘não chora”, levanta a
cabeça”, endireita a coluna”.
Os mesmos controles que críticos ( “ prefiro assim” “ creio”, “ penso” Pense , logo desista, céus!!), diretores, coreógrafos, ditadores e outros fdp costumam
exigir de atores, bailarinos, brasileiros, humanidade, não?
De alguma maneira esse texto me fala
mais do nosso corpo dentro do jogo de interpretação que de uma relação qualquer
homem/mulher em bate-boca. Controlei vocês? Mandei recado? Porque insistimos em
ser tolos tantas vezes e tanto tempo? Só há uma relação séria e importante em
teatro: a do corpo do ator com os corpos de seu público.
Os Outros somos a distração.
Em clôture, o que está tentando se juntar é um
corpo. Há um corpo feito, nomeado, aos pedaços em cena e isso é talvez o melhor
de todo o texto.
Isso é o que realmente separa, num
espaço sagrado, agora também palco, um do outro. Porque clôture pode ser clausura-
que separa a vida religiosa do mundo- ou pode ser aquele lugar nas igrejas
reservado para o clero, separando-o dos fiéis.
A palavra clôture aqui usada pelo autor
provavelmente tem essa significação e não a do óbvio” encerramento”. Peçam-me as traduções da próxima vez, que
farei com prazer.
Prefiro cercas, portanto. Estamos ilhas cercados de palavras por todos os
lados.
Vejo a ação se passar num ensaio, sobre
um palco, onde há uma “quarta parede”. E
refere-se ao público várias vezes (“eu me dei a
eles”,a nós portanto- diz Ada). Nesse
referencial, encontrei em clôture uma metáfora maravilhosa desse mesmo palco italiano que coloca
uma conversa de surdos lá em cima, num espaço sagrado, separado desde a subida
dos atores ao iniciar a peça.
E, cá em baixo, os Outros, dos quais o
texto dessa peça não duvida nem por um segundo serem ouvintes e videntes. Coisa
bem francêsa.
Ora, não somos.
Tanto não somos que o autor teme que o
bate-boca dos antigos amantes nos
perturbe e não nos permita ver que eles não
conversam, não conversaram nunca e não conversarão jamais, mesmo que chovam melancias dos céus de Recife. Talvez essa
seja uma boa razão para a escolha do autor de juntar tudo, meu caro Fischer. O
que nos une, uniu e iunirá, não é razão, é fascinação. E lá no apartamento ao
lado agora um senhor de meu tempo coloca todo dia em volume 10 músicas de seu e
meu passado.
Fascinaram a ele e a mim.
Não reclamo porque continuo fascinado. Fascinado,
mesmo que não tenham sido exatamente sadias- apenas
cacarecos do que fomos e estou introduzindo nosso misantropo aqui de novo - as memórias que se colaram nesses sons, nessas músicas,
nessas peças, os Outros sons, as conversas, os papos, as revoltas de minha
eterna juventude esquerdista que tentamos à força reviver. O fdm está tocando fascinação com Nat King
Cole e eu vou fazer uma pausa porque estou chorando, fascinado comigo mesmo e
minha história pessoal , romanticamente passada como se passada, como perda,
como fim.
Qual.
Nunca perdemos nada.
Vou chorar um pouquinho e voltar para cá.
c-
Creio que não me fiz
entender por me estender demais, fazendo um bife gigantesco desse meu texto. Estou
fazendo meu papel de macho crítico, sou João.
d-
Vou resumir: O texto
literário de Clôture de l´Amour me coloca várias dúvidas sobre suas qualidades e pelo menos
uma sobre sua tradução. Então creio que algo faltou na minha noite, por conta
desse senhor. Não me importam quantos prêmios tenha recebido, não me importam
que bons pensamentos tenha o autor e quantas outras peças geniais tenha
escrito. Até Molière escreveu “pastorais” para o Luis XIV dançar, tremendas
porcarias que não diminuem em nada O Côrno Imaginário...
Agora é
a fala de Ada: Não permito que fale de meu
trabalho!
e-
Falo sim, pois sou
eu quem apaga as luzes aqui.
A- Sempre acho que fica mais fácil de se trabalhar com um bom texto dramatúrgico. Esse , como disse ,me deixa
preocupado.Substituiria por um Molière ou um Koltès .Mas não sou eu que decide
isso. Criticos são apenas público. Faço questão de lembrar isso.
B- O extraordinário é quando um texto que na minha apenas opinião não é o
melhor consegue ser defendido com tanta força e inteligência. Rapaz, cada um
desenvolve 50 minutos de fala e nós nem nos movemos. Vcs ouviram cadeiras com
ruídos, tosses inoportunas, roncos abafados ou coisas tais? Esses dois atores
conseguem nos segurar na ponta das vozes deles sem nos largar. Estou dizendo
isso até porque acho coisas belas no
texto e outras bem menos interessantes.
C- E no entanto.
D- E no entanto fiquei eu lá, em
suspenso. E olha que estava sentado numa daquelas fileiras de trás, miserável
cujo espaço entre cadeiras não permite se esticar a perna- teatros titicas que
nós temos e que não respeitam o público mas querem que ele venha lotá-los,
E- Perdoem não dar os nomes corretos agora, por causa da hora e não dá tempo
de conferir. Mas corrigirei para a edição final,ok?
F-
Então: atores fa-bu-lo-sos. Fazendo
uma peça-textão, difícil mesmo e como já cansaram de dizer: indo contra algumas
correntes modernas que foram eliminando a fala sonora do personagem em favor de
uma noção mais ampla de texto. Noção da qual meu amigo Barthes foi um dos
tecedores.
G- A direção-e olha que odeio diretores!- foi limpa e precisa. Não sei se o intermezzo do sapateado e a
queda final da melancia sanguinolenta
fazem parte do texto original.
H- Se fazem: que achado!
I-
Se não fazem, e é invenção de
algum de vocês: que achado!
J-
Aquele simples corredor de luz é
tudo. O local de tanta grandeza de vida anterior é sombrio. “Você é grande”-
me parece ter ouvido João falar de Ada.
K- Aquele palco é tudo. Um presente do escritor que decidiu colocar atores
ensaiando e discutindo consigo mesmos. Tudo falsamente nu.
L-
Aquele público, que maravilha! Em
Recife, dia de chuva, lá para aquelas bandas?!!! E tudo fascinado. Lindo, não?
Só chorando!
M- Bota o Nat King Cole ai por favor
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