quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O VAZIO É CHEIO DE COISAS


POEMA MÜHLEMBERG
Há algo que me marcou profundamente nesse espetáculo de Poema.
A absoluta exatidão de movimentos em que o olhar dela puxa as mãos e as mãos seguem lenta lenta lentamente puxando os braços, os braços os ombros, os ombros o tronco subdividido em músculos e músculos e pernas que agarram e pés ganchos ou pouso suave.
Isso, o pouso suave de um corpo vigoroso. Poema faz crer que há lei da gravidade sim pois há corpo e força. Mas ao mesmo tempo tudo flui como se essa maldição da Terra não existisse. A natureza dela ama se esconder- fusus criptestai filein- sob uma fluidez calma, mansa e delicada. E quem disse isso foi Heráclito e quem comentou foi Heidegger .
Então, me desculpem, não sei se o que vou dizer é para se pensar.
1-     Perguntas para críticos e corpos em movimento
Em geral, pegamos a coisa, dividimos em pedacinhos e esvaziamos a carcaça e reenchemos tudo com o mais deslavado dos racionalismos: explicamos tudo. Se não podemos falar sobre as coisas de que elas nos adiantam? Nossa voz é nosso movimento de posse do mundo.
Em geral dizemos ”entendemos” e com isso dizemos engoli, degluti, faz parte de mim agora. Conhecer é um movimento de colocar para dentro tudo o que se move fora de nós. Quantas metáforas sobre o conhecimento, sobre a arte, a cultura, como alimento! Cultura já é um legein, colher e como tal revela o alimento.
Conhecer se põe como movimento em direção ao interior. Nosso, do mundo. A isso chamaram arché: o princípio. De princeps, primeiro, portanto supondo muitos. Trocamos no ocidente pós Darwin esse termo por “origem”, ponto onde se origina, onde começa. E com isso iniciamos nossa gigantesca matança da multiplicidade e da diversidade. Diferentemente, princeps, principal , greco-romano, gera Outros, Diversos.
Então um oco pode ser princeps, dificilmente origem. Aqui só um  zen  colocaria a metáfora do conhecer num bambu cujo centro é um oco. Que vazio é esse se só sabedoria?
Há um conhecimento contudo que nos exterioriza, nos abre ao meio e  nos deixa à mostra.
Como saltar do bambu para o movimento, para a dança?
Usar primeiro os olhos não para o externo, vara, número um pitagórico dependurado  em desenho de luz- mas o interno, oco, princeps lotado de toda sabedoria dos Outros, segundos, terceiros, infinitos, ilimitados, apeiron?
Como? Voltando a uma das teses capitais de Aristóteles: a da inexistência do vazio (Kénon) absolutoseparado dos corpos. Não há lá vazio sem corpos. E essa é a profundidade oca do termo apeiron;  vazio, cheio de ilimitações. Como continuar a supor como Kant, opondo-se a Aristóteles, que sendo forma a priori da sensibilidade o vazio não teria corpos?
E já que estamos entrando no universo do sensível, como saltar do oco do bambu, que ama se esconder como a natureza, para a dança, se essa é movimento, e se movimento se expõe ao olhar?
Ou se dizendo novamente: Aristóteles escreveu sobre o vazio, referindo o movimento local (Phorá), ou seja, o movimento de um corpo de um lugar para outro:
Como recuperar então o movimento de um corpo no vazio? Voando? Voando singularmente? Voando com os outros? Originando dança, principiando dança, dançando com os outros?
Como recuperar o vôo, se não somos zen, não somos aristotélicos, não somos gregos, não somos nada além de um corpo?
Vou repetir. Não sei se o que vou dizer é para se pensar.
Dança-se com os olhos- ensinou-me um dos livros do Yakusha Rongo,
Porém.
A dança contemporânea de Poema Mühlemberg ousa apagar nosso olhar e nosso  espaço descendo uma noite em palco e deixando nosso olhar vagar no vazio, no ilimitado no apeiron lá onde tudo se inicia e tudo se movimenta. Ousa iniciar a arché – o início primordial- com chuva, água, elemento em que Tales de Mileto supunha estar dependurada a Terra.
Para rapidamente ousar supor o ilimitado, apeiron, o vazio e transformá-lo no principio de tudo, na arché, seguindo os passos de Anaximandro contra Tales. E ainda num mesmo balanço dos movimentos do Universo, ousa como os pitagóricos postular que do vazio nasce um ponto, o numero um, e o pendura, agora vara de bambu, no centro da escuridão e evolui por sobre ele nos envolvendo o olhar.
Vou repetir. Não sei se o que vou dizer é para se pensar
2-Sobre bambus
No Japão e na China acredita-se que seu tronco oco, serve de morada aos deuses.

3- sobre busca da sabedoria no vazio
Há um ensinamento zen sobre o interior oco do bambu. É como um espaço livre que deveríamos deixar em nossa mente. Uma abertura em nosso ser.
4- sobre o Vazio
o objeto da filosofia é, para Spinoza, o vazio., (althussser)
5- sobre o Vôo, e o vôo bem sucedido de Poema
et caelum certe patet; ibimus illac:
e o céu certamente está aberto: é para lá que iremos
omnia possideat, non possidet aera Minos."
pois
Minos posue tudo, o ar Minos não possue.
Ovidio, metamorfose,viii
Todo vôo dessa menina me parece uma oferta
para enfrentarmos os que nos prendem à terra,
mas não são donos dos céus.
6- um pouco de história dos võos mal-sucedidos
We have always envied birds their wings. From angels to superheroes, avian-human hybrids have been fixtures of myth, legend and art. In the 9th century, the celebrated Andalusian inventor Abbas ibn Firnas fashioned a pair of wings out of wood and silk, attached them to his back, covered the rest of his body in feathers, and jumped from a promontory. He avoided the fate of his forebear Icarus, but a witness reported that ‘in alighting… his back was very much hurt’. Leonardo da Vinci sketched scores of plans for winged, human-powered flying machines called ornithopters. Batman’s pinion-pointed cape looms over popular culture. ‘Red Bull gives you wings,’ promise the energy drink’s ads.
Novamente:
porque insistir que eu fale na parte técnica sobre gente que está além da técnica , que é simplesmente monstro? Nunca vi tantos num só festival.

ENCERRAMENTO DO AMOR



CLÔTURE DE L´AMOUR
Do amor e suas cercas.


Li dois colegas meus.
Danilo que escreveu sobre essa montagem e Lionel Fischer, esse último  sobre a peça com a direção de Luis Felipe Reis.
Notas iniciais, a partir de meus colegas
1-   A verborragia de mais de duas horas de espetáculo (Danilo)
Eu diria que a peça se constitui em dois gigantescos bifes.
Esse o nome que se dava ao falar de um personagem que tivesse mais de meia página. Mas tanto bife quanto verborragia são termos usados em geral para textos  de dramaturgos ruins ou muito muito antigões. Um Shakespeare para anunciar a morte de Ophelia, põe na boca de Gertrude um filé inteiro. Mas que bife!
There is a Willow growes aslant a Brooke,
That shewes his hore leaues in the glassie streame:
There with fantasticke Garlands did she come,
Of Crow-flowers, Nettles, Daysies, and long Purples,
That liberall Shepheards giue a grosser name;
No meio das flores- lembrem-se que o autor nos brindou, em ATRIZ, com uma atriz deitada no meio das flores, certamente bebendo a imagem nessas muddy waters de Shakespeare – o maldito bardo coloca uma flor que tem um grosser name, algo como caralho, pois essa é sua forma. Pesquisem no Google. Então de bandeja está a nos dar uma mescla de coisas românticas com coisas safadas, um leve tom pornô elisabetano. No fundo daquele rio morre a beleza e morre a sexualidade.
Foi como li essas purples, e não como os críticos ou apressados, essas “cold Maids”....But our cold Maids doe Dead Mens Fingers call them:
Essas coisas – o autor nisso é implacável pois é assim que falamos da ficção cênica para lhe dar “realidade”, parecendo uns tratados kantianos- podem ter uma significação precisa dentro do contexto da peça e então não é mais um bife nem verborragia: é inteligência.
Permitam que eu me explique, se é que preciso depois de Gertrude:
a-   O truque literário é bem simples: escrevem-se os diálogos, depois separam-se todas as falas e de novo se as junta segundo cada personagem. Entenderam, o truque? Pois agora vão lá e escrevam suas peças, pois estamos precisando.




b-   Foi a partir daí que meu amigo de papel Fischer fez a pergunta:
porque o autor juntou tudo, fazendo opção por discursos isolados?
Responde, como conjectura, que assim saímos dos bate-papos tradicionais entre casais o que permite que tudo que um personagem diz seja escutado pelo outro e pelo público. As razões que dá são interessantes por propor que um francês teria bastante razões intelectuais para fazer isso, o que deu à peça um tom por demais cerebral.
Como diz Ada: discordo, ah discordo!
( Desculpem, não era a vez dela.)
Não sei o que o autor pretendeu, mas sei o que escreveu e como escreveu.
E é só o que tenho.
A crítica literária se especializou em escavar a vida e obra de autores para tentar elucidar o que eles insistiam em fazer mistério, porque senhores, um texto é apenas um pedaço solto de mistério. Dramas porém nunca foram lá tão boa “literatura”, pois escritos na própria raiz da escrita, o visual, foram feitos para serem vistos. Por isso os gregos daquele século V glorioso, ao descobrirem a escrita, descobriram o teatro, abrindo o futuro para tudo o que fosse virtual. Pela mesma razão monges medievais iluminavam letras iniciais e enchiam velhos textos com desenhinhos bem mal feitos mas que cold Maids cool illuminations call them.
E como não ver que o texto que temos é apenas o da representação, do que se re-apresenta face a nós. Conceito que Barthes estendeu para tudo que fosse tecido e não apenas as letrinhas,literae, impressas em papel perecível para segurar a história contada pelo autor e perpetuar sua memória entre nós?
Algo se nos apresenta através das sombras e entrelinhas que se lhe criam às quais nomeamos  desenho de luz (meu deus qual iluminador se seguraria para manter só aquela linha, faixa, fixa no palco? Esse rapaz é muito bom, senhores!) 
Algo se nos apresenta num espaço próprio que lhe comprime, nos reprime e toda hora temos que indicar ao público: isso é cena, isso é teatro, isso é cenário, e às vezes: não bote uma parede aqui na frente ó Brecht!  E creio- é artigo de fé- que uma dramaturgia que se expande vigorosamente “verborrágica” , talvez esteja exatamente também construindo essa parede entre  eles o os Outros, performers e seu público. Pela estranheza causada pelo retorno para trás, para o textão.  Nem vou citar meu cupincha Samuel- já está ficando chato e já estão até atacando o pobre, mas na verdade a mim, porque são apenas interpretações dele e não ele mesmo, sou eu na minha ignorância e errância que chamo algo “ isso é Samuca!”. E nem é. É só saudade besta de um grande amigo.
Mas, danem-se, aqui o autor sou eu e  vou citar sim pois é só o título de obra: “texticules”, textes pour rien. .  Se isso, como os purples da Rainha Gertrude não for referência clara a clássicos textões, não sei o que é. Testículos certamente, já que Samuca tem um humor irlandês como Freak Fischer mais anthropo que muita conversa.
Algo se nos apresenta diretamente na casca externa do atores, voz, gestos, trejeitos, ações, entonações, corridas para voltar ao foco, à luz. Não foi erro de ator, é errância: eles saem e entram e saem da luz. Interpretar não e só chegar lá e flexionar o texto, coisa que esses três também dão um banho. Não é só gesticular “corretamente”, não se apontando com o dedo, digitalmente, para o trem onde está escrito isso é um trem. Interpretar é encontrar as pequeninas sombras que nosso corpo projeta no espaço quando nos expomos e mostrá-las, indicar os lugares onde se aninham as luzes em forma de sombras. João e Ada fizeram esse percurso com uma maestria que dá ódio só ter descoberto isso bem velho como eu.
Esses guris de Brasília estão me apavorando.
Já disseram da região de nascimento de Jesus, mas temos que glosar: há algo de bom que nasce em Brasilia?
Há, pode? 
Deuses, não consigo escrever sem pensar o tempo todo em Renata, meu Jesus predileto. Desculpem-me as citações da Bíblia. Nem sou pastor.
Depois desse lapso gigante verborrágico sobre a encenação e a peça,volto à peça e aos que a comentaram, incluindo eu mesmo.
Porque foi o único ponto fraco da minha noite.
Para ser francêsa- coisa aventada por Lionel, talvez tenha mais a ver com Molière que com filosofia. O Côrno Imaginário é uma peça de 1600 e picos e é moderna, é quase teatro do absurdo como queria o Esslin, o rapaz alemão que mais errou sobre Samuel e sobre absurdo, apesar de ter sido o texto que mais influenciou os anos 60, se dizia.
Molière escreveu a primeira peça em que ninguém conversa com ninguém: é um diálogo de surdos- também como se dizia, como se a falta de sons e de verborragia e bifes nos impedisse de dialogar.  Pocquelin prenunciou uma série de textos em que as pessoas não conseguem se comunicar- sobre a incomunicabilidade humana portanto- quase prevendo que a Europa iria se lascar em duas guerras mundiais que iriam gerar esse sentimento de frustração diante do Outro, tão bem nomeado por Sartre, Camus e outros francêses.
Aqui, fechando esse ciclo francês de discussão sobre textos e testículos, não há bife, nada é verborrágico. É técnica de escritura que ressalta o não se interessar do personagem pela opinião do outro uma vez que se fala se fala e se fala em nome do outro:” mas foi você, você quem ...”etc.
Antes de falar em Koltès,  ou bancar o diretor: só há uma coisa – ó coisa- que eu mudaria na encenação dessa peça: não haveria o Outro em cena. Só evocado, pois parece-me uma das grandezas da cena teatral é a de nos fazer ver o que não está no palco, mas por trás de tudo.
O teatro moderno mudou um pouco essa escritura fazendo-nos ver tudo, até quem passa pelo fundo por estar com a pauta para treinar o sapateado.
Ou, em gag, pois está na hora de se mudar o foco de um personagem para o outro. Achado divertidíssimo dessa peça, que é melô- sempre mistura presenças fortes de texto com presenças desconexas porque se apresentando como reais, de imagens. Como Ada comendo banana enquanto João se acaba em argumentos.
Agora permitam-me voltar a Koltès
Claro, prefiro de longe Koltès.
Solidão nos Campos de Algodão fala exatamente do mesmo lugar e exatamente  desta maneira, a dois. Não junta. Deixa o bate-boca, que por sinal é bate-boca mesmo porque tanto o dealer como o comprador estão amedrontados um com o outro. E isso não enfraquece em nada o texto. Mas Koltès foi um dos grandes  e provavelmente – pelo que vi do autor de Clôture- bem mais refinado.  
Inicia com bifes gigantescos de cada personagem e aos poucos vai reduzindo o texto de cada um (uma página, meia, um quarto, 10 linhas, 5, 4, 3..) ao se dirigir ao outro, até se trocarem frases curtas. Os personagens se aproximam, por aproximar o tempo de fala, por aumentar o tempo de escuta. E isso só um Koltès fez. Deixando para o publico a pergunta final: “então quais as armas?”
As armas são as palavras, a luta a comunicação.
Isso aparece bastante também em Clôture de l´Amour.
A palavra aparece ligada a paradigmas, linguagem ou discussões chiques pós-estruturalistas, zombadas por Ada.  Dessa vez a palavra aparece como palavra e não como arma, apesar de João e Ada se digladiarem o tempo todo. Ai entra aquilo que chamamos preferências ou gosto, devidamente zombado já por Voltaire na história de que sapo gosta de sapas. Prefiro de longe Koltès. E vou inventar um palco para minha escolha: esse Brasil em que as armas-tolas serão liberadas.
Armas são as palavras que todo tempo tentam nos retirar.
E finalmente conseguiram fazê-lo com Renata e, claro, nós todos.
Já que me armei, vou incluir agora uma observação que caberia depois mas não terei chance de voltar a ela.
Vi um autor dizer que esse texto é interessante porque na maioria dos textos a voz masculina é a mais forte e termina por vencer de algum modo e que em Clôture  é a mulher quem leva a melhor. Discussões sobre mulheres à parte, creio que foi o que me chateou no texto: João é só agressão e culpabilização. Ada ainda o ama(?), ela ainda estende a mão para ele. Fiquei com a terrível sensação de que João era um puta escroto e Ada gente boa, sofrida, mas forte.
E isso me conduz rapidamente à nefanda moral da história.
Desde quando precisamos de moral em nossas histórias? Quousque tandem abusaremos da paciência de nosso público escolhendo a conclusão por ele, dando-lhe conselhos e depois achando ruim de pastores, padres, diretores teatrais, bolsoninhos e tantos perversos bolsos e tantos perversos ninhos e toda tralha que quer fazer nossa cabeça à força, nos orientar, guiar?
Em nome de que deuses, ó deus?!!!
Dito isso, em voz bem alta e pedindo licença a João para roubar-lhe a fúria, é bela a cena em que só aparece o braço.
Mais bela ainda pelo fato de um e outro repetirem tantas vezes marcas corporais físicas, “ levanta a cabeça” etc.
Coisa tão bem anotada por meu amigo Fischer, esse rapaz que agora estou seguindo nas redes .
A cena reafirma o que as marcas textuais insistem em botar em nossa cara e assim devolvem ao corpo o epicentro dessa tsunami verbal.
 O que os disgraça não é a razão cartesianamente francesa ou razões.
Mas o corpo e seus espaços, nomeado aqui e ali aos pedaços e posto todo tempo sob controles: ‘não chora”, levanta a cabeça”, endireita a coluna”.
Os mesmos controles que críticos ( “ prefiro assim” “ creio”, “ penso” Pense , logo desista, céus!!), diretores, coreógrafos, ditadores e outros fdp costumam exigir de atores, bailarinos, brasileiros, humanidade, não?
De alguma maneira esse texto me fala mais do nosso corpo dentro do jogo de interpretação que de uma relação qualquer homem/mulher em bate-boca. Controlei vocês? Mandei recado? Porque insistimos em ser tolos tantas vezes e tanto tempo? Só há uma relação séria e importante em teatro: a do corpo do ator com os corpos de seu público.
Os Outros somos a distração.
Em clôture, o que está tentando se juntar é um corpo. Há um corpo feito, nomeado, aos pedaços em cena e isso é talvez o melhor de todo o texto.
Isso é o que realmente separa, num espaço sagrado, agora também palco, um do outro. Porque clôture pode ser clausura- que separa a vida religiosa do mundo- ou pode ser aquele lugar nas igrejas reservado para o clero, separando-o dos fiéis.
A palavra clôture aqui usada pelo autor provavelmente tem essa significação e não a do óbvio” encerramento”.  Peçam-me as traduções da próxima vez, que farei com prazer.
Prefiro cercas, portanto. Estamos ilhas cercados de palavras por todos os lados.
Vejo a ação se passar num ensaio, sobre um palco, onde  há uma “quarta parede”. E refere-se ao público várias vezes (“eu me dei a eles”,a nós portanto- diz Ada). Nesse referencial, encontrei em clôture uma metáfora maravilhosa desse mesmo palco italiano que coloca uma conversa de surdos lá em cima, num espaço sagrado, separado desde a subida dos atores ao iniciar a peça.
E, cá em baixo, os Outros, dos quais o texto dessa peça não duvida nem por um segundo serem ouvintes e videntes. Coisa bem francêsa.
Ora, não somos.
Tanto não somos que o autor teme que o bate-boca dos antigos amantes  nos perturbe e não nos permita ver que eles não conversam, não conversaram nunca e não conversarão jamais, mesmo que chovam melancias dos céus de Recife. Talvez essa seja uma boa razão para a escolha do autor de juntar tudo, meu caro Fischer. O que nos une, uniu e iunirá, não é razão, é fascinação. E lá no apartamento ao lado agora um senhor de meu tempo coloca todo dia em volume 10 músicas de seu e meu passado.
Fascinaram a ele e a mim.
Não reclamo porque continuo fascinado. Fascinado, mesmo que não tenham sido exatamente sadias- apenas cacarecos do que fomos e estou introduzindo nosso misantropo aqui de novo - as memórias que se colaram nesses sons, nessas músicas, nessas peças, os Outros sons, as conversas, os papos, as revoltas de minha eterna juventude esquerdista que tentamos à força reviver.  O fdm está tocando fascinação com Nat King Cole e eu vou fazer uma pausa porque estou chorando, fascinado comigo mesmo e minha história pessoal , romanticamente passada como se passada, como perda, como fim.
Qual.
Nunca perdemos nada.
Vou chorar um pouquinho e voltar para cá.

c-   Creio que não me fiz entender por me estender demais, fazendo um bife gigantesco desse meu texto. Estou fazendo meu papel de macho crítico, sou João.
d-   Vou resumir: O texto literário de Clôture de l´Amour me coloca várias dúvidas sobre suas qualidades e pelo menos uma sobre sua tradução. Então creio que algo faltou na minha noite, por conta desse senhor. Não me importam quantos prêmios tenha recebido, não me importam que bons pensamentos tenha o autor e quantas outras peças geniais tenha escrito. Até Molière escreveu “pastorais” para o Luis XIV dançar, tremendas porcarias que não diminuem em nada O Côrno Imaginário...
Agora é a fala de Ada: Não permito que fale de meu trabalho!





e-   Falo sim, pois sou eu quem apaga as luzes aqui.
A-  Sempre acho que fica mais fácil de se trabalhar com um bom texto  dramatúrgico. Esse , como disse ,me deixa preocupado.Substituiria por um Molière ou um Koltès .Mas não sou eu que decide isso. Criticos são apenas público. Faço questão de lembrar isso.
B-   O extraordinário é quando um  texto que na minha apenas opinião não é o melhor consegue ser defendido com tanta força e inteligência. Rapaz, cada um desenvolve 50 minutos de fala e nós nem nos movemos. Vcs ouviram cadeiras com ruídos, tosses inoportunas, roncos abafados ou coisas tais? Esses dois atores conseguem nos segurar na ponta das vozes deles sem nos largar. Estou dizendo isso até  porque acho coisas belas no texto e outras bem menos interessantes.
C-  E no entanto.
D-  E no entanto  fiquei eu lá, em suspenso. E olha que estava sentado numa daquelas fileiras de trás, miserável cujo espaço entre cadeiras não permite se esticar a perna- teatros titicas que nós temos e que não respeitam o público mas querem que ele venha lotá-los,
E-  Perdoem não dar os nomes corretos agora, por causa da hora e não dá tempo de conferir. Mas corrigirei para a edição final,ok?
F-   Então: atores fa-bu-lo-sos. Fazendo uma peça-textão, difícil mesmo e como já cansaram de dizer: indo contra algumas correntes modernas que foram eliminando a fala sonora do personagem em favor de uma noção mais ampla de texto. Noção da qual meu amigo Barthes foi um dos tecedores.
G-  A direção-e olha que odeio diretores!- foi limpa e precisa. Não sei se o intermezzo do sapateado e a queda  final da melancia sanguinolenta fazem parte do texto original.
H-   Se fazem: que achado!
I-     Se não fazem, e é invenção de algum de vocês: que achado!
J-   Aquele simples corredor de luz é tudo. O local de tanta grandeza de vida anterior é sombrio. “Você é grande”- me parece ter ouvido João falar de Ada.
K-  Aquele palco é tudo. Um presente do escritor que decidiu colocar atores ensaiando e discutindo consigo mesmos. Tudo falsamente nu.
L-   Aquele público, que maravilha! Em Recife, dia de chuva, lá para aquelas bandas?!!! E tudo fascinado. Lindo, não? Só chorando!
M-  Bota o Nat King Cole ai por favor

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

MISANTHROFREAK


MISANTHROFREAK
En dedans



Eu disse que é uma pauleira. 
É uma pauleira.
Eu vi ali um legítimo Beckett pelo humor ácido, típico de irlandeses, ingleses e por extensão  norte americanos. 
Mas não consigo ver Rodrigo assim,  estou achando que  Rodrigo Fischer é um metaleiro. 
Estranho dizer isso de um cara que tem o cinema no sangue e o reverencia e referencia constantemente. Dele pode-se falar em design de som também. Sons não são mais elementos etéreos que entram e saem por ouvidos. O cinema deixou de ser mudo apenas porque descobriu-se como desenhar o som. E  MacLaren passou a se divertir no Canadá em rabiscar a trilha no celuloide...Não sei se viajei redondamente mas ouvi perfeitamente o trenzinho caipira de Villa lobos no final, numa versão incrível. Ouvi Rodrigo balbuciar como se estivesse num Achadouro, e passar o tempo numa gama extraordinária de sons vocais. Sons. Sons. Imagens acústicas como queria Saussure criando a linguística e o estruturalismo. Cujo processo de significação – e portanto de ressignificação- não se dá pela referência de um significante a um sentido (aqui bobamente explicado como a palavra árvore remetendo ao sentido que temos de árvore) mas de um significante a um significante, numa cadeia infinita de sons. Quase que falamos por falar, quase que falamos para fazer ruído e não ficarmos com medo de estarmos sós, quase que falamos por termos todo o tempo do mundo e estaríamos dando estofo a ele, preenchendo-o, deprimidos talvez por horizontes sem luz.
Viajei muito. não foi? Mas porque haveria eu de sentir um trem constante nesse trajeto,  da nomeação isso é um cachimbo, perdão, isso é um trem até ao meu fantasmagórico trenzinho de Villalobos, senão porque nosso personagem apenas anda , apenas perfaz um percurso , qualquer de um ponto qualquer a outro qualquer, sem limite de palco e platéia, de cima ou debaixo, quase um grego à busca do local de origem de sua maldição?E quando essa maldição são os sons quando querem significar , as imagens quando querem significar e apenas nos entopem o caminho como pedras no sapato, dentro ou fora de lugar- para onde ir?
Non sequitur é o humor que nos resta. O humor inglês. 
O humor de Fischer. 
Beckett deixou inúmeros persongens à espera. Todo teatro que nos precedeu deixou o público à espera, brechando através do buraco da boca do palco – nos disse Barthes e parou de ir ao teatro. A descoberta do non sequitur nos parece ser por haver duas maneiras de se olhar: sequencialmente, uma coisa atrás da outra, fazendo de conta que no universo há causalidade. Ou empilhada ou paradigmaticamente, uma coisa por cima da outra, em bloco. Pensando em bloco como se dizia nos anos 60, por conta do Heinlim, me parece.
Estranhos numa terra estranha. 
Despossuidos até de nós mesmos. Tendo apenas um ponto de partida. Aquele onde Fischer se coloca para começar a se mover. Lembrando-me miseravelmente do personagem de Katastrophè de Beckett.
Rodrigo Fischer para mim é um Samuel empilhador, paradigmático, aquele que prende os personagens a uma árvore seca-“ árvore”, exclamará Saussure para exemplificar o signo-  a um quarto em Filme, a um pedestalzinho em Katastrophè, a Vasos em Comédia. Diferente porém, onde seu humor é menos francês que inglês. Diferente onde Samuel corta, fica simples, porque empilha com lógica, Rodrigo empilha e pronto, não necessita ligar nada ao lado.Aliás, não necessita. Preenche o mundo com cacarecos sonoros e cacarecos de imagens parecendo vasculhar um gigantesco lixo de computador: é lixo, é abandono, mas tudo foi algum dia uma imagem nossa, um documento nosso, um selfie nosso. Esse misantropo nada molieresco não dá chance, não cede a  nenhuma perspectiva, não abre nenhum horizonte romântico. Não estamos mais trafegando absurdos. 
Porque no fundo onde Rodrigo nos desce só há escombros. 
Seu texto é palimpsesto, escrito em pele, por sobre outro texto raspado.
Essa insistência na escritura é que me deixou pasmo. 
Pensei que ia ficar deprimido, como fico em tantos outros textos que afundam. Rodrigo deu uma volta enorme e me deixou no mesmo lugar de onde ele começara: em pé, querendo me movimentar. 
E creio que nisso reside a enorme força política desse seu texto. 
O mundo exterior invade todo o tempo esse pequenino universo circular. 
Nem que seja de trem.

Não me peçam para falar em ficha técnica. 
A turma dele é profissional.




 MISANTHROFREAK
En dehors

Mesmo assim não me peçam para falar da ficha técnica.
Isso a gente fala quando pode contribuir tecnicamente com algum grupo.
Isso a gente fala quando crê que crítico sabe mais que o artista que construiu, ou quando cremos que  crítico seja um engenheiro de sentidos.
Eu sou crítico, me orgulho disso e sei perfeitamente que há obras que me ultrapassam.
E que a melhor contribuição que posso dar aos artistas envolvidos é dizer que fui ultrapassado por eles.
1-Por exemplo: assisti em vídeo a peça e não achei legal o tempo dado à boneca inflável nem à acochada. Cena que deu algum ruído na plateia tb.
Mas fui ultrapassado:  a cena toda é delicada e talvez a mais reconhecidamente romântica de todo o texto. Quando a desmonta esvaziando o ar, pneuma grego, ruâh de Javé, sopro de samuel há uma impossibilidade gigantesca se enchendo no palco, impossibilidade de dar vida, de contato, metáfora pesada de nossos sites de relacionamentos, nossas redes sociais que nos emaranham prometendo o contato total e universal, nossa cena que nos une com desconfianças.
Porque nosso zap, nossa web, é nossa boneca inflável.  
E muitas vêzes estamos navegando cada vez mais para dentro, pra longe e para fora, em busca de contato,.
Sem tato.
Aquilo que achei cortável – porque crítica é de kritein, cortar- não era.
Muito pelo contrário.

2- A cena ao fundo construindo um lugar, onde habita boneco-vivo que a mim assustou, criação de alguns filmes de terror dentro de uma tradição americana cinematográfica antiga que era de ódio a  crianças e filhos.  A cena introduz o trem da próxima viagem, cuja realidade é a nominação: isto é um trem.E cujo movimento transforma natureza em movimento de passar, passagem, paisagem.O trem nomeado  estará iniciando a mesma viagem que o personagem inicia ao entrarmos no teatro.
Achei desnecessária em video, achei que repetia o que já estava dizendo.
Imaginem!!!
E a verdade é que eu havia perdido um link importante.
O link era aquele teatrinho de sombras ao fundo, mais uma vez teatro de encontros e o encontro era de uma infância reencontrada  por um ursinho de pelúcia, em cujo fundo histórico habita o próprio personagem , à procura, mais uma vez dançando e perdendo como numa micro-cena do encontro com a boneca inflável.
 Cena multiplicada dessa vez, pois à mesa, ao fundo e bem à frente em evidência, em vidência, bem na frente, bem na sua cara, em cine, kinè, breve só movimento.
E por isso, por um segundo me pareceu superficial a raiz do que algum crítico nomeara  como  estética ou marca registrada de Misanthrofreak:  o cinema. 
Achei que o boneco parecia Chuck e fui parar onde um crítico me orientara. E errara. Afinal se Édipo erra, porque não críticos.  
Mas, por segundos, pareceu-me que Rodrigo está mais para Kinematógrafo. Entendido como a possibilidade de se registrar , se escrever sobre o movimento, com o movimento, em movimento.
 Escrever em movimento,.
 Pois kinè é isso e nisso Rodrigo é mais grego que Sófocles- apesar dos percursos deste, da errância eterna de seu Édipo. 
Misanthrofreak  hoje para mim é pura kinè . 
E rodrigo um grego aristofãnico. Da comédia. Do riso que castiga. Simplesmente invertendo, como Heidegger as interpretações: sua marca é  fania e aristos:  mostrar aos  poucos.
E para isso ele se movimenta:  para mostrar.
Mostra-nos o escondido e não a evidência covarde.
Mostra-nos o fracasso composto de tentativas e não a única que se sucede a todas e por isso nomeamos tolamente sucesso.  
Mostra-nos o erro, da errância do Sujeito, diversidade de caminhos, escolha impossível do certo, mero acaso da descoberta. Porque todo erro sempre encobre apenas  a sua verdade, nunca se descobre nada que não esteja já no erro, já encoberto. 
Des-velar  talvez, pois contem a vela da nau onde navegamos em tecnologias  e contém o desvelo que é o cuidado essencial quando tratamos com as coisas dos  humanos.
Rodrigo vela e desvela conosco.
Mostra-nos  o esforço de mover a perna, de quebrar pedras que impedem de mover a perna, o esforço de recolocá-las de volta no lugar para que se siga focando o esforço e não a vitória, a tentativa e não o andar, o caminho e não para onde ele leva. 
E é a esse movimento que chamamos méta odos.
Misanthrfreak  é a anarquia- sim pois se trata de archè- mais metódica que já passou por nosso palco.
Rodrigo passa caminhando.
E deixando pedrinhas como um Joãozinho .
Protegendo -nos, público, Marias.
Para sabermos os caminhos de volta para casa, ele reconstruiu milimetricamente sua história, deixando marcas e pistas aqui e ali cercando  um conjunto todo precioso – visivelmente disforme, perdido em busca de sentidos, porém centrado nos dois  sentidos mais comuns dos  desencontros de nossa história : o ouvir e o ver.  
Com carinho soa aqui, ressoa ali , faz eco mais à frente , fala uma só frase, exercitada com as mais brilhantes técnicas vocais, tentando apesar de barítono -  o cara dos sons graves, porque tudo em teatro é grave e a gravidade é a lei maioir que prende todo vôo-  tentando dizer  , repito,  em altos, arethas,baixos,arnaldos, graves, agudos,, caetanos ,   do inicio ao  fim apenas  um só e completo verso : 
estamos sós, mas não é o que queremos.  
E só faz isso para sabermos o caminho de volta pra casa.
Pois não me pareceu nem um instante que Rodrigo pretendesse  destruir a casa. 
O seu não é um teatro dos anos 60.
Esse  quadrado de madeira ou pedra nos guarda e protege de monstruosos ursos que insistem em se levantar de dentro de nós para mostrar: vejam sou coberto de  peleúrcia, sou  feroz, sou bosque paisagem, céus e esporros, céus e tentativas de primitivos rabiscos dentro da noite, noite dia, claro escuro, viagem para trás onde minha natureza se encontra com as outras e solta o que está em mim.
O que realmente sou: naturalmente monstro.  
Deu para sentir como , só num maldita cena ,eu bobeei diante do monstro e por isso fiquei total e indelicadamente  ultrapassado?
Shakespeare  tinha uma técnica de repetir a peça em micro-cenas ou pecinhas dentro da peça. Rodrigo monta montanhas de pedacinhos de texto que se juntam dentro de nossas cabeças aos poucos, sem precisar de ligação tipo “ e então, como dissemos segue que, mas, porém, e, agora mais do nunca faustão,inexoravelmente,  visto que não viram,  cena I e agora cena II, isso é um trem e isso é o som de um  trem e a palavra trem dita é justamente o som de um trem´ 
E enche os espaços com papéis e frases que supostamente poderiam ligar o todo, ou nos ajudar a ir em frente.
A encenação para o tio, tida como um escárnio por parte de Hamlet, é em verdade apenas um desses momentos. O público elisabetano fazia um pouco de tudo dentro dos teatros e muitas vezes não acompanhava o texto principal, além de chegar atrasado nas peças por se estar duelando com alguém. 
Rodrigo ficou com pena do publico e deu uma chance a mais para continuar seguindo seus passos trôpegos num caminho só de pedras, pois de um teatro que não se quer educativo, jesuítico, romântico ou seja lá o que for de fazedor de cabeças. 
É apenas um papo.
E do que talvez mais nosso tetro esteja precisando: um longo papo com nosso público
Um longo, interminável e aparentemente sem objetivo algum papo. Que se mede pela forma de fazê-lo, que significa por formas e não por ideias vagas ou frases bem feitas como essas que estou tentando escrever aqui.
 Breve, na melhor tradição do texto moderno depois de um Stearn, um Joyce, um Samuel.
 E podemos acrescentar, tranquilamente, desse menino, Rodrigo.


DIREÇÃO
ATUAÇÃO
TEXTO
DESIGN DE SOM
DESIGN DE LUZ:                  RODRIGO   FISCHER

DESENHO DE VÍDEO
ANIMAÇLÃO
RESPONSÁVEL TÉCNICO:   FERNADO GUTIERREZ

PRODUÇÃO:                      YASMIN SANTANA    
CINEASTAS:                         PETER AZEN 7 JULIANO CHIQUETTO

FIGURINO:                          DIANA DINIZ

02.02 / 03.02
19 HORAS
TEATRO APOLO
ESTETÁCULO COM ÁUDIO-DESCRIÇÃO  E LIBRAS

  CONSTRUÇÃO DO ATOR ATO I ATO I DATA 05/08/2022 PROF. PAULO MICHELOTTO   HÁ MUITO O QUE FALAR. VOU ESCREVER PARA OS ALUNOS VOU ...